Com seu enredo de retaliações desmedidas, ‘Avenida Brasil’ faz o que só as grandes novelas do passado faziam: hipnotiza, e sobretudo, inquieta os telespectadores de todo o país.

Adriana Esteves e Débora Falabella se preparavam para gravarem a primeira cena da virada que se operou na novela ‘Avenida Brasil’ nas semanas anteriores. Ao lado da direita a diretora Amora Mautner, as intérpretes da vilã Carminha e da cozinheira Nina debatiam que tom deveriam imprimir ás suas respectivas personagens agora que começava a se consumar o plano de vingança da mocinha. A atmosfera era de ansiedade á beira da piscina do ex jogador Tufão, item mais vistoso da cidade cenográfica que reproduz o fictício subúrbio do Divino da central de produção da rede Globo, no Rio de Janeiro, o Projac. De repente, uma abelha teimosa começou rodear Adriana, até pousar em seus cabelos. A atriz saiu correndo, aos berros. ‘Carminha com medo de abelhinha? Fala sério’, tripudiou a diretora.

Nas semanas seguintes, porém, Carminha apresentou-se de fato como uma criatura frágil e cheia de medo, muito diversa da mulher arrogante e estridente que os telespectadores conheciam. Essa suavização de um caráter férreo de bruxa foi obra da chantagem de sua rival. Na teledramaturgia brasileira, nunca houve uma criatura tão obcecada por vingança quanto Nina – aliás, Rita. Para todos efeitos, heroína de ‘Avenida Brasil’, a personagem revelou-se de uma monstruosa criatividade para bolar as mais diversas humilhações a mulher que fizera sua infelicidade na infância. Tratou-a por ‘vaca’ e ‘vadia’, entre outros epítetos, fez com que ela lavasse roupa e esfregasse o chão e, suprema degradação, obrigou-a a comer o intragável macarrão com salsicha que Carminha adota como ração básica para os empregados da casa. Nina/Rita para confirmar uma daquelas geniais tiras misóginas do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900): ‘Na vingança e o amor, a mulher é mais bárbara que o homem’. Fazer o personagem ‘do bem’ cruzar de forma tão intensiva a linha que separa a equilibrada justiça da mais bárbara vingança foi uma das ousadias do autor João Emanuel Carneiro. O público aprovou essa novidade perversa: No capítulo em que se concretizou a virada, exibido no dia 25 passado, ‘Avenida Brasil’ alcançou 50 pontos no painel nacional do ibope, o equivalente a mais de 46 milhões de espectadores sintonizados a novela – ou a impressionante marca de oito em cada dez lares que viam TV no horário. A via-crúcis de Carminha prosseguiu na semana, quando a novela atingiu seu recorde de audiência na principal praça do país para mercado de TV, a Grande São Paulo, com 46 pontos.
No decorrer da história, Nina chegou ainda mais baixo: armou um plano para que Carminha a visse na cama com Max, amante a parceiro de crimes da vilã. De tão perturbada, Carminha acabou internada numa clínica de repouso. ‘Quando ela não aguentar mais ser tripudiada pedirá para sair de casa’, antecipou a noveleiro João Emanuel Carneiro. A má índole da heroína não é a única inovação do autor: em ‘Avenida’, o subúrbio deixou de ser um mero cenário lateral para impor-se pela primeira vez como o centro absoluto de um folhetim das nove. Sem que com isso os espectadores se sentissem que sua inteligência foi subestimada, o que ocorre sempre quando os autores se apoiam nos ‘bares das donas Juras’ e afins popularescos. O ritmo ágil, a fotografia bem cuidada, os figurinos notavelmente precisos: tudo aponta para um rejuvenescimento providencial de um gênero que se acomodara no marasmo. Por fim, há os méritos da história em si mesma. Valendo-se de um elenco de pouco mais de trinta personagens fixos, menso da metade do usual, Carneiro entrincheirou-se na principal atração do horário nobre munido de uma bala de outro: um embate entre vilã e heroína baseado numa radical subversão de papéis. ‘Através da obsessão de Nina pela vingança, me interessa refletir sobre até que ponto vale apena se corromper eticamente em nome de uma boa causa, afirma Carneiro.

A medida em que o desatino da heroína ia escalando e ela mimetizava até mesmo os trejeitos da antiga algoz, o desconforto se tornou evidente. Nas redes sociais ( que vem fervilhando com a novela), eram as mulheres que mais se incomodavam com as atitudes da mocinha. Para elas, Nina teria ultrapassado o limite do tolerável, em especial, quando profanando um atributo caro ao orgulho feminino, passou a tesoura no megahair da inimiga.
A vingança em ‘Avenida Brasil’ é assunto de mulheres. A atuação de Mel Maia, a garotinha que fez o papel de Rita na infância, definiu o tom dramático da novela. Num futuro folhetim das seis, ela terá realce de protagonista, na pele de espécie de uma Pequena Buda. No set, ela só deu problema para chorar, nada que não fosse resolvido com uma dose de coerção psicológica: ‘Minha tática para fazer a Melzinha abrir o berreiro foi dizer que ela nunca seria tão boa quanto outra atriz infantil de que ela é fã’, revela Amora Mautner.
A personagem forte, porém, é Carminha, pepel de Adriana Esteves.’ A imagem de boa moça fez dela a escolha perfeita para uma vilã dissimulada’, Diz o diretor de núcleo da trama.
MOMENTOS DA VIRADA
Em ‘Avenida Brasil’, João Emanuel Carneiro retomou uma prática de Janete Clair: reservar o clímax da história para o meio da novela. A maioria dos folhetins que mobilizaram a atenção do pais deixou o ápice dramático para o final. Tais como:

Selva de Pedra (1972) – Janete Clair insistiu na virada, não só no fim, mas no meio da novela, com a explosão do fusca em que viajava Simone, quase na metade da trama. A personagem seria dada como morta e voltaria, passando-se por outra. O momento em que ela é desmascarada, cerca de 5o capítulos depois, foi outro ponto em que a novela paralisou o país.

Vale Tudo (1988) – A novela de Gilberto Braga teve várias viradas e momentos tensos, como o momento em que Raquel rasga o vestido de noiva da filha, Maria de Fátima, no capítulo 80. Mas o auge veio no final, quando Leila confessa ter matado Odete Roitman.

Senhora do Destino (2005) – A trama de Aguinaldo Silva, inspirada na vida real de Pedrinho, que roubado na maternidade, em 1986, só encontrou sua família em 2002. O momento culminante deu-se logo após a metade da novela, quando Isabel descobre que é a filha desaparecida de Maria do Carmo.

Avenida Brasil (2012) – Jogada no lixão pela madrasta Carminha, Nina orquestrou sua vingança lentamente. O capítulo 103, quando ela afinal põe sua revanche em ação, foi o maior pico de audiência até então, de 50 pontos.